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| Imagem: Grupo de Leitores Cyl Gallindo |
A CONSERVAÇÃO DO GRITO-GESTO
Poema VII
Serei o último poeta a me sentar à mesa
o verso só vem a mim depois de cristalizado.
Meus versos são gente pobre
e convivem com a fome
nos brinquedos da infância.
São os meus versos surrados
em plenas ruas do mundo
e confidenciam o seu corpo
à intimidade do relento.
Mas que os abutres não se iludam,
pois não joguei sobre a mesa
todos os naipes do Grito-Gesto:
o segredo é necessário para o jogo e para a luta.
Dei apenas o meu canto feito de estrela e de sangue:
no amor nunca tem noites
nem esquinas de escuridão!
Em cada carta há duas faces
que os homens tentam beijar
mas enquanto o trunfo estiver retido
a canção será menor...
Vamos traçar novamente a esperança e a vontade!
A SOBREVIVÊNCIA - MANGUE
— Recife —
POEMA I
E a ponte esvai-se pelo rio
trêmula navegante nula;
nas suas cáries residimos
logicamente crustáceos.
Bípedes arquitetando sombras,
planos rostos refletidos: nunca,
no aquático espelho dos sobrados
sustém o eco dos sentidos desusados
que mordem das impegadas mãos o tato.
Incerta lama convivida:
alma lama renascida ao sol.
Anfíbio (caranguejos, siris, meninos)
o peito ereto, as mãos para cima,
trazem as bandeiras de medalhas-lama.
Do céu ganhou a armação
em ossos; um nato esquife.
E o recheio, que lhe desse o rio.
Lá na Ponte Giratória, por mais que gire:
ossos que vivem a sobreviver de ossos!
CIA RETIDA
Limitaram teu corpo com cal e pedra,
quando ainda do teu seio brotava infância,
mas não te destruíram. E no espaço, além,
pelo fio das horas tu tecias
tua imagem, mais que verde, de esperança.
Esta imagem de mansinho se espalhou,
com força e mais bela, no meu sangue,
e nas tardes de outono, com teu nome,
distraía a primavera quase exangue.
Não se rendam jamais à pedra e à cal,
que argamassa se faz, cumprindo horrores.
Cantemos o outono e a primavera,
que são feitos de cantos e de amores.
Vês! que num peito, às vezes, comprimido,
entre algozes e angústias, brotam flores.
ROCHEDO HUMANO
POEMA III
Pois não é bom que o homem só esteja:
o homem e a mulher tecem harmonia
onde quer que o amor buscado seja.
Se a partir da aurora nasce o dia,
é forçoso, portanto, estar atento
à luz que dos olhos teus se irradia.
Para cravar em mim vital momento
da parte que da vida é minha vida
e no tear das ilusões é meu alento,
eu não devo olvidar que em toda a lida
lapidei o meu corpo em tua busca
e filtrei a solidão que me castiga.
Mas a alegria de ter-te é mais antiga!
CINCO CHAGAS
Cinco chagas prostram-te no chão
e teu espírito leve evaporou
porque da Paz o homem duvidou.
Que estrutura arcaica te gerou
que permitiu assim teu passamento
nesta Jerusalém feita a cimento?
É que rasgou, a voz da tua guitarra,
a farsa do poder que faz a guerra
sem plantar um só corpo sob a terra.
Calaram-te John (Emanuel) Lennon
mas teu silêncio, neste momento,
faz o mundo repleto de argumento.
Brasília, /80
AS QUATRO ESTAÇÕES
O meu dicionário não tem o vocábulo
outono. - Seria um tempo marrom,
matizado de preto?
Inverno - é período de chuvas,
galochas nos pés,
no punho o guarda-chuva,
proliferação de vírus,
hibernação forçada.
Verão - é de janeiro a janeiro
sol a pino queimando
o destino desta raça.
- é o lado de fora,
a rua sempre em festas
Primavera - é esta alegria incontrolável de viver
segundo por segundo, como quem tece as horas;
é o direito de percepção das coisas fúteis e inúteis
vontade de soltar pipas, de jogar bolas,
de permanecer criança
é a fotografia da memória, com ela ao meu lado,
curtindo o cio da minha própria alma.
cavalgando o meu corpo.
SER CRIANÇA EM NOITE DE NATAL
Tantas vezes a fadiga se desmancha
na mão que faz aurora e faz orvalho
e fez a vida fez o homem e faz verdade.
Tantas vezes a aurora se levanta
expondo as manhãs como crianças
nas peripécias sutis da claridade.
Tantas vezes a vida se acorda
e se joga a fazer a coisa feita
que para colhê-la ao homem bastaria
lançar o coração feito uma rede
a diluir entre nós essa parede
de indiferença erguida a cada dia.
Mas se os dias se vestem destes fatos
dada a colheita de frutos imediatos
tracemos novos rumos sem segredos
que a partir dum crepúsculo universal
igualitários na posse dos brinquedos
sejamos crianças em Noite de Natal.
Brasília, 1986
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