João Carlos Taveira*
Quando André Gide recusou os originais de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, no início do século XX, não imaginava a besteira que estava fazendo, principalmente para a editora Gallimard e para a sua reputação de intelectual sério e respeitado. Algum tempo depois, Proust conseguiu editor para uma das obras máximas da literatura mundial. A verdade é que, além de ficar chupando o dedo, o senhor Gide também teve de engolir sapos inimagináveis. E, o que foi pior, de conviver com o atestado de miopia que o acompanhou pelo resto da vida.
Com Cyl Gallindo, um século depois, aconteceu algo semelhante: foi impedido por escritores (portanto, seus pares) de fazer parte de uma agremiação literária, pelo simples fato de ser considerado autor muito ousado e pernicioso para os padrões da época. Mas que época era essa, que já permitia casamento entre pessoas do mesmo sexo e, em contrapartida, liberava a mulher para afazeres nem tão feminis assim fora do lar? Aliás, há mais de 20 anos as redes de televisão no Brasil exibem novelas, em reprise, no horário vespertino, repletas de cenas de sexo, que fariam corar até o autor de Decamerão. Porém, essa é outra história.
Mas nada disso tem importância diante do fato que nos impele a escrever sobre Cyl Gallindo, que acaba de publicar mais um grande livro de sua autoria. Trata-se de A intimidade da palavra (Edições Bagaço, Recife, 2010), reunião de ensaios e artigos sobre Euclides da Cunha, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, Óscar Ribas, além de dois textos esplendorosos: “Em defesa da Língua Portuguesa” e “Panorâmica do conto em Pernambuco”. Só o prefácio às 2.ª e 3.ª edições de Canudos e outros temas vale por muitos livros de autores estrangeiros traduzidos pelas grandes editoras brasileiras, numa atitude extremamente covarde em favor do sistema imbecilizante que vive de promover a desfiguração da cultura nacional. Ou seja, mostrar o pior para soterrar o melhor, em nome de uma mentira que se propaga e se perpetua desde o descobrimento. E tudo com a “devida” conivência da imprensa, falada, escrita e televisada.
O livro reúne ensaios, palestras e prefácios, textos de extraordinária força criativa: “Canudos e outros temas”, “Lá fui amigo do rei”, “Buíque: geografia literária de Graciliano Ramos”, “Óscar Ribas e Angola, a pátria-mãe dos meus afetos”, e os já citados “Em defesa da Língua Portuguesa” e “Panorâmica do conto em Pernambuco”, em que Cyl Gallindo analisa detidamente cada autor e sua obra e nos dá uma límpida visão da relação de amizade que manteve com alguns desses escritores, ao longo dos anos.
A intimidade da palavra concentra o melhor do pensamento e da visão crítica do autor de Um morto coberto de razão. Ali estão bem definidos certos conceitos sociológicos sobre a nossa brasilidade, em perfeita sintonia com os autores analisados e suas obras. Tem muito da verve de Euclides da Cunha, de Graciliano Ramos, de Manuel Bandeira — artistas que souberam fazer da literatura uma arte encantatória e seminal, sem cair no lugar-comum ou na vala dos facilitarismos vaidosos que geralmente cercam a mediania dos homens. Os autores referidos souberam, antes de tudo, elevar a escrita, tanto a documental e romanesca quanto a poética, ao patamar mais elevado da transcendência de seus significados. Tudo isso acrescido do testemunho sincero e amoroso que Cyl Gallindo dá do grande Óscar Ribas, autor angolano que viajou pelo Brasil e foi morrer em Portugal já com 94 anos de idade, vividos em prol da boa literatura, da liberdade de uma nação e da solidariedade humana.
Para aqueles que ainda não o conhecem, Cyl Gallindo aportou nesta cidade pela primeira vez nos idos de 1960, data da inauguração. Depois da posse de Jânio Quadros, foi convidado a ficar no Serviço de Assistência aos Municípios, trabalho que recusou. Seu novo contato com a cidade ocorreu em 1968, quando aqui publicou a Agenda poética do Recife, com prefácio de Joaquim Cardozo, sob o selo da Coordenada Editora de Brasília, de propriedade de Victor Alegria, hoje à frente da Thesaurus Editora.
Depois de suas andanças pelo mundo, esse filho de Buíque veio fixar residência em Brasília no ano de 1986. E aqui permaneceu por 16 anos, cinco dos quais trabalhando no Senado Federal, já aposentado de sua repartição de origem. Por essa época, Cyl Gallindo já trazia na bagagem algumas obras que, se fossem escritas noutra língua, bastariam para torná-lo digno de renome nacional. Mas, de lá para cá, o autor de A conservação do gesto-grito e As galinhas do coronel não parou de escrever e de publicar seus livros na área da poesia, da sociologia, do conto e do ensaio. Para concluir, sirvo-me do trecho de encerramento da conferência proferida por Cyl Gallindo na Academia Recifense de Letras, intitulada “Em defesa da Língua Portuguesa”:
“Eu tenho uma advertência a fazer a esses usuários de palavras, frases, denominação de estabelecimentos comerciais ou industriais em inglês, cuja pretensão é mostrar que são importantes, eruditos, inteligentes, esnobes: os países de língua inglesa estão cheios de imbecis falando inglês. Nem por isso deixam de ser imbecis.”
Brasília, 12 de janeiro de 2011.
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* João Carlos Taveira é poeta e crítico literário, autor de seis livros de poesia, entre os quais Aceitação do branco, A flauta em construção e Arquitetura do homem. É membro da Academia Brasiliense de Letras, da Associação Nacional de Escritores e do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, de que foi vice-presidente.
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